Frances de Azevedo
Estivera ali, aquela caixa de madeira, por muitos anos. Atravessara parte da história da cidade. Podia, até, quem sabe, contar história...
Era feita de madeira escura, encimada por desenho de artista anônimo, desses que se encontram nos rincões longínquos do país. Alguns, verdadeiros artistas; outros, nem tanto, porém exercendo a arte inata que Deus lhes concedeu.
Aquela era, com certeza, uma caixa especial. Rara. Uma preciosidade como objeto. Quiçá, também, pelo que continha. Quem sabe!
De quem era?!
Atravessara o tempo. Quanto tempo?!
Mantinha-se quase intacta, a não ser por pequenos arranhões próximos da fechadura de ferro. O orifício, por onde se introduzia a chave, representava a boca de um animal. Talvez de um lobo. Não sei muito bem. Dava para ver nitidamente os olhos, as orelhas, até os pelos emaranhados do animal. Parecia que este se engasgava com a chave lá no fundo de sua garganta...
A cor da caixa?!
Ah, a cor daquela caixa! Um misto de cor de ébano, com estrias de sol esmaecido, tendo no centro uma paisagem onde se delineava uma casa singela, com sua porta e uma única janela; ambas, abertas. Ao lado, duas árvores de pequeno porte tendo na base vegetação rasteira. Ao fundo da paisagem: um portão, ou melhor, uma porteira fechada com um cão próximo à espera (talvez) de seu dono.
Tal pintura parecia transmitir algo mais. Um prenúncio de uma espera que jamais se acabou...
Não era grande. Tinha quase dois palmos de comprimento por outro tanto de largura. Quase quadrada. Não era pesada. Deveria conter, provavelmente, alguns papéis.
Tal relíquia fora encontrada por acaso. Ao afastar o antigo e pesado guarda-roupa, surpresa, ela se deparou com um nicho, de onde retirou o objeto.
Já em seu próprio quarto, sentada em confortável poltrona, tentou girar a chave. Estava travada. Forçou com cuidado para não danificar tal preciosidade. Assim, foi fazendo algumas tentativas...
A ansiedade já tomava conta dela. Não mais era senhora de si. Os pensamentos fervilhavam com conjecturas diversas.
Interessante como a mente humana viaja tão longe e com tamanha rapidez. Não tem fronteiras, corre livre pelos campos da imaginação!
Finalmente, após um clique, um destravar rouco, a fechadura cedeu por completo. Acordou de seu longo e secreto sono (de quanto tempo não se sabe...).
Aquela dificuldade seria o guardião do que na caixa se continha?!
Aquele cão, lá no limiar da porteira, esperava, realmente, alguém que nunca chegou?!
Ao levantar, delicadamente, a tampa, que rangeu em suas dobradiças, sentiu um leve sopro, um suspiro que saiu do passado...
Eram papéis, como imaginara!
Somente papéis?!
Apanhou o primeiro. Neste, observou anotações de débito e crédito, grafadas com caneta-tinteiro; um ou outro escrito a indicar pago, não pago, data, etc. Nada que indicasse, num primeiro momento, algo mais significativo.
Nesta busca, nesta curiosidade voraz, foi remexendo na sequencia. Encontrou outros escritos mais ou menos semelhantes. Um ou outro a título de recado ou de cumprimentos...
Mais para o fim, suas mãos resvalaram num laço de fita pintalgado de amarelo pelos anos transcorridos, que enfeixava um maço de cartas.
Desatou o laço, com cuidado. As cartas se libertaram, exalando o cheiro de seu longo descanso.
Não sabia se eram cartas de amor, de desabafo, de grande mágoa, de espera, de saudade, ou um misto de tudo.
À medida que ia lendo, devassando e se intrometendo naquela intimidade há tanto preservada, foi percebendo que eram gritos de angústia, de sufoco de uma alma reprimida, que destoava de seu meio e de sua época.
Naquelas pungentes linhas, em letra clara, firme e bem delineada, estava o âmago da escritora em toda a sua plenitude; às escancaras, à luz plena que reluz!
O que diziam aquelas cartas?! Qual o anseio de sua autora?!
Simplesmente viver, sem ter os pés e mãos atados. Ter seus sonhos realizados, ser dona de si mesma, como sempre quis, sem imposições ferrenhas.
Sonho de sorrir, por sorrir.
Sonho de ir e vir e seguir por seus próprios pés.
Sonho de voar para outras plagas.
Sonho de poder levantar os olhos, sem quaisquer restrições paternas.
Sonho de aprender, sem se arrepender.
E de, talvez, poder correr livre pelos campos com aquele que seu coração elegera!
Ele era alto, forte, trabalhava lá na fazenda de seu pai. Viera de outra cidade distante. Contava-se que era de família abastada, mas que se desaviera com a família, e, ali, veio parar pela mão do destino.
Mas no final do século XIX, os costumes eram outros, bem diferentes dos atuais!
A certa altura desse remexer de lembranças, ela começou a perceber que se tratava de cartas de sua avó-materna.
Foi, então, que se lembrou do que sua mãe lhe contara: sua avó fora escolhida para o casamento. Num determinado dia, previamente determinado, seu bisavô reuniu as filhas e alinhou-as em frente de seu avô, que acabou escolhendo a companheira de sua vida.
Lá no fundo da caixa, ela encontrou uma joia ricamente adornada: um camafeu, sem corrente alguma! Abriu. Deparou-se com a fotografia de um belo jovem a sorrir.
Ela jurou que não era de seu avô...
(Prêmio Edição. Publicado na Coletânea Festa Surpresa, Porto Seguro, Bahia/2009).